sábado, 29 de março de 2008

Fim do Mundo

Parece que foi ontem. E isso pode até ser um paradoxo, quando pensado, porque a idéia de fim sempre se sustentou no futuro. Como pode existir o depois do fim? Dificilmente também a matéria narrada será a mesma. Ainda que eu tenha, preservadas, uma maneira lógica de contar os fatos, não existem mais fatos a narrar. Pedir uma redação para que? Eu estou escrevendo em nome de quantos? O professor sequer olha para cá, ao lado dos que perderam tudo, inclusive a memória, e também a possibilidade de registro da memória. Então porque ainda consigo erigir uma linguagem? Talvez ela se escreva. E eu não exista. Depois do fim, é possível existir?

É uma escola perdida no meio do nada. Fica numa encosta do morro. Apontaria para alguma cidade da janela, se houvesse. Mas o que vemos é um nada líquido. Somos órfãos das relações com o mundo. Primeiro, nosso mundo se dividia entre céu e água, terras circundantes, e uma idéia de povoado à beira do mundo. E o mundo existia, embora não fosse bom, e tínhamos idéia através do trânsito de bois, um ou outro caminhão numa rodovia ao longe, e do barulho das estrelas, quando não havia luz elétrica. Tínhamos campinas, futebóis, pescaria, colheitas, histórias do avós e bisavós, surras ocasionais de cinto, um caminho sem fim até a escola, à beira do mundo e do útero. E anunciavam a água infinda e com palavras que eram complexas, a saída deste mundo. Quer dizer, anunciavam o fim. E não era Deus nem anjos os donos da palavra. Eram os donos da represa. Da água.

O professor pediu mais urgência, mas a frase ficou perdida no meio do nada. Ele olha constantemente para a janela. O que não é novidade é que todos ali de certa forma já sabem do fim. Que ficar ali rememorando o impossível, em folhas de caderno é uma forma de terapia: embora no lugar da memória fique o branco da página entre arames riscados aprisionando balbucios. O professor olha o nada, disfarça e mesmo assim sabemos que a direção do seu olhar é de arquitetura do ausente: apaga o borrão do dilúvio e monta na memória pequenos núcleos de moradias paupérrimas: onde a maioria de nós tinha onde pousar quando rasurávamos a tarde com nossas tarefas de classe e era um fim de mentirinha. Agora o barulho ao longe é um rugido de água exigindo sua terra. Quem é peixe pode ficar. O resto é escolho. Ou escolha.

Próximos da água. Estamos muito próximos da água, meu pai me dizia. O que eles pretendem fazer aqui? Aqui é o fim do mundo. É aqui que a água contida pretende ficar. Depois, sempre depois, que o tempo depois do fim já não é tempo nomeado. Pais, avós, gente mais velha aceitaram trocar a dureza do nosso chão por um mundo que os acolhesse. Para as bandas do começo dele. O fim que ficasse para a água. O que sabíamos nós foi de entreouvidos. Conversas sussurradas à beira do fogão de lenha. Do chão riscado com paus e indecisões. Com as mágoas secas e espinhosas. Então, para não participar do fim do mundo, nos mandaram para esta escola. Para escrever uma redação da vida que ia inundar. Mas chegamos quietos, assustados, secos. E sem sede. A escola indicava o vazio, mas dentro, bem dentro dela e com remorso, o professor. Só pediu uma vez e não teve forças para repetir. Só ficava olhando para a janela. Ainda tentando imaginar o mundo antes da água.

A imitação do êxodo. Pequena e triste e com menos bagagem. Bem rala, além do que, ninguém os guia, só um desnorte. Primeiro, as crianças, numa caminhada rumo à escola, agora misto de acampamento e espera. Depois, o restante, os retirantes ambíguos e de pouca resistência, deixando para trás o amontoado de casas, quintais, cercas, currais, mas iam deixando também seus causos, as histórias de assombro, as redes empunhando a parede, os antepassados entocado nas raízes, as cantigas de ninar, as invernadas, o chafurdar dos porcos – mas tudo isso eu não coloco aqui, em palavra, mas dentro da cerração do pensamento, onde água torrencial não jorra nem limpa, nem arrasta. De onde se pode começar, ainda que seja o mundo delicado e abstrato, é reconstruir uma memória. Se parar no papel, corro o risco de inventá-la. E observo, no espaço restrito da escola, que invenção é algo doloroso demais para estes meninos com a roupa do corpo, já duvidando da existência de uma autoridade maior que a água lá fora, rugindo e traindo nossas terras. Quais os peixes que tomarão nosso lugar?


Grandes, muito grandes, pareceu dizer o professor antes de fechar a porta, com menos palavras do que quando entrou.

terça-feira, 25 de março de 2008

Elocubrações em torno de um possível autor

Deus o livre, mas se você inventar de ser escritor, se afie. Não igual lâmina, mas nessa de dureza mesmo, admitindo desde já um pouco de cada coisa como tempero, mas nunca uma vida esgarçada demais. Leia tudo o que cair na mão e desconfie de tudo; sapeque uns tapas em uns clássicos – que são livros maneiros e cheios de gírias antigas e saque que tudo ali não é fruto do tempo que envernizou em respeito, mas permanência da qualidade literária mesmo, essa que você e sabe que é montanha e tem que escalar. Não ligue, não faça uso de comparativos entre quem deixa de fazer lição na escola da vida. Há escritor para tudo, para todo tipo de leitor. Encontre a sua voz ou as múltiplas vozes. Não caia nessa de que uma série de livros acumulados dentro de si é garantia de sua geléia real. Escreva já. Vá fuçando o romance guardado. Meta-se de crítico, de cinéfilo, de enólogo, vá encarando tudo. Se tem uma coisa bem desrespeitadamente vital é que a vida pode ser pirateada, tomada a pulso em todas as formas. Para ser um escritor primeiro entenda: passamos por imbecil, tolo, precário, morto, cadáver antecipado, ladrão, canalha, todos os cargos não-remunerados, bêbado, louco, puto da mesma vida. Escrever e ler sempre, mesmo sem livro, sem biblioteca, sem papel. Toda a liberdade está aí para ser usada. E não há prisão pior do que a falta do que fazer.

quinta-feira, 20 de março de 2008

Xadrez para grávidas

Há um tempo, numa lista de discussão, eu e um amigo começamos a jogar xadrez por e-mail. A jornalista Angélica Lúcio, que também participante da lista (e grávida) reclamou da natureza do evento e pediu ao moderador para nos advertir. Como não me fiz de rogado, e achando que um pouco de cultura enxadrística não faria mal ao bebê, catei nos próprios meios jornalísticos esta interessante matéria.

Médicos descobrem cura do stress pelo xadrez

A equipe liderada pelo médico russo Vladimir Puckchin está em termos de finalização de uma importante pesquisa, divulgada na revista Science. Estudos recentes apontam as qualidades terapêuticas adquiridas na observação de uma boa partida de xadrez. No hospital Prokoviev, pacientes com asma e doenças da respiração foram tratados com partidas gravadas em vídeo. O melhor efeito comprovado em dias foi graças a partida Smielianovich x Tomachev, cuja abertura siciliana com gâmbito provocou sintomas de euforia. Foram desde então cedidas as fitas gravadas de Kasparov, um conjunto de 27 fitas para uma única partida (para os depressivos). Segundo análise do médico de plantão Denieviski, "partidas em que se trocam cavalos por bispos na grande diagonal são indicadas para caso de inflamação dos glânglios", analisa com disfarçado orgulho.

A melhor notícia está na área de obstetrícia. Médicos e enxadristas renomados descobriram estupefactos que a simples leitura das anotações das partidas para grávidas estressadas ou histéricas trazia benefício visível. O primeiro fenômeno ocorreu durante a leitura da violenta partida entre Karpov x Alekhine III, cujas torres foram varridas por uma horda de peões ensandecidos. "A clara alegoria de fraternidade entre os povos é a alma desta partida", alegou Kovaslencenkov rodeado por duas sorridentes grávidas, dopadas com 3 doses diárias de Mequinho (partidas abertas sem roque). "Toda e qualquer grávida deve passar todo o período pré-natal observando, se possivel, os campeonatos compreendidos entre 1856 a 1927. Além de ser um salutar exercício vibrante de movimentação intelectual, é uma aula de convivência e saúde entre as buchudas", define Kovaslencenkov, também grávido.

quarta-feira, 19 de março de 2008

Um caso de espantosa insignificância

Nunca na minha vida tive problemas com seres imaginários. Mesmo porque, delatei-os todos ao meu psicanalista.

Até descobrir que ele era produto, também, de minha imaginação. O que me irrita é o fato, que considero uma traição, de que ele diz o contrário. De que eu sou o fruto da imaginação dele. Ledo engano, minha cara abstração. O consultório, a rua, o bairro sequer existem. Eu mesmo fui à região e comprovei. Vi uma funerária azul, uma praça e um ponto de ônibus. E nunca ouviram falar em clínica ou consultório por ali.

Volto agora soberbo ao lugar de onde eu vim. Mas assalta-me uma dúvida: de onde eu vim?